limites de areia e mar
limites de areia e mar
recorrentes paisagens à beira
móveis e sinuosas
reiteram sombras em refluxo
e recomeçam
sempre
um quociente de intensidade - líquido e tão sólido
suspende e impacta o que lá estava
escorre
libidinal e efêmero sobre o continente
o que emerge da arrebentantação?
o que permanece e se cria nesse átimo perceptivo?
cada concha, cada pequeno graveto e folha
gastos pelo tempo, pelo sal e metal
encontra uma nova cartografia
aquarela terrosa cintila no horizonte líquido
limiar de nutrição e abuso
o rio conta ao mar a sua sorte
galhos resilientes amanhecem suspensos nas falésias
testemunham os contornos da costa
polida pelo movimento curvo
cortante e inflamável da memória
Todos se alimentam desse rio-mar. O extenso leito, há décadas intoxicado pela ganância e ignorância de práticas abusivas, hoje desafia e desconcerta com sua força de resistência e criação. A vila de Regência, alheia ao lucro trimestral de 7,9 bilhões de reais1, paga o ônus do maior crime ambiental da história. Os bancos áridos modificam o fluxo dos barcos e das colheitas. A lama do capital financeiro insiste na diluição do caráter comunal e da autonomia da região. As armadilhas se mantêm silenciadas e silenciadoras como modelo branco-burocrático-assistencialista, que usa suas diferentes tecnologias de captura e escassez para disseminar narrativas “que não servem apenas para reiterar verdades consagradas mas para adaptá-las às frequentes explosões de violência cotidiana”2.
Quais são os contornos dessa economia de lucros e dívidas recordes? O que aconteceu depois da lama aos corpos de gente e aos corpos da terra que sofreram mais de 50 diferentes impactos 3?
Do rompimento dos limites, outras existências se conectam como as raízes da restinga, protegidas do olhar midiático, superficial e colonizador. Fios tecidos em espaço nobre, natural e humanamente singular. As correntes de ancestralidade, desejos, imaginários e outras perspectivas são bordadas entre remadas, guaíbas e carebas. Elas ainda estão lá. Pensar nesse rio é também pensar em invisibilidades e sombras. Como deslocar a percepção para olhar os afluentes de um possível comum? Como fundar relações mais salutares? Todos os corpos líquidos se comunicam e se alimentam mutuamente. Como rio e lagoa, como mar, rio, como gente. Como?

1 lucro líquido da Vale do Rio Doce obtido no primeiro trimestre de 2017. Fonte: http://www.vale.com/brasil/pt/aboutvale/news/paginas/financial-report-1q17.aspx. Acesso em 12 de julho de 2017.
2 SOVIK, LIV. Aqui não tem branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. Pg.44.
3 LEONARDO, F.; IZOTON, J.; VALIM, H. CREADO, E. TRIGUEIRO, A. SILVA, B. DUARTE, L. SANTANA. N. Rompimento da barragem de Fundão (SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do desastre na foz do Rio Doce, distritos de Regência e Povoação, Linhares (ES). Relatório de pesquisa. GEPPEDES. 2017
http://www.greenpeace.org.br/hubfs/Campanhas/Agua_Para_Quem/documentos/Greenpeace_FozRioDoce.pdf