A arte das armadilhas
Todo um imaginário atravessa os objetos, as técnicas e os conhecimentos ligados a pesca artesanal. Na foz do Rio Doce, iniciei uma pesquisa sobres as armadilhas de pesca tradicionais.
Na festa do Caboclo Bernado, em Regência, durante as apresentações das bandas de Congo, conheci seu Simião. Além de famoso construtor de barcos e pescador, Simião é um líder comunitário e o presidente da associação dos pescadores de Povoação, uma vila vizinha, com 600 famílias, que fica entre o rio, o mar e a lagoa. Na manhã seguinte da festa, coloquei a bicicleta no barco de dois pescadores, atravessei a boca da barra com eles, e pedalei uns 8 km até Povoação. Simião me recebeu com carinho, mostrou a vila e os arredores, contou parte da história do lugar e da pesca local. Me apresentou um amigo dele um pouco mais velho. Seu Arnaldo, hoje com 88 anos, tem uma vida dedicada a pesca. Ele só parou de pescar e de confeccionar os jequiás porque quase perdeu a visão. O jequiá (ou jequí) é uma armadilha artesanal da região que serve (pelo menos servia até a chegada da lama tóxica em 2015) para pescar camarões pitu e lagostas de agua doce. O grande quintal/jardim do seu Arnaldo fica nas beiras do leito do Rio Doce e, entre outras coisas, está cheio de redes de espera e de jequiás.
Seu Simião no quintal do seu Arnaldo
No pé da arvore, os jequiás
As armadilhas artesanais, com suas belas formas (oblongas e curvilíneas de fora, de funis por dentro) sempre me apareceram como objetos altamente estéticos.
Os jequiás do Rio ainda hoje Doce são feitas com matérias naturais (construídas em taquara ou ubá, um tipo de bambou que cresce na margens do rio) e assim “biodegradáveis” contrastam com as redes “modernas” de nylon, um material utilizado massivamente para a confecção das redes a partir dos anos 1980.
Os jequiás são objetos usados no quadro de uma pesca de pequeno porte (para consumo próprio ou venda artesanal), portanto respeitosa dos ecossistemas e dos ciclos naturais.
Elas são, sem dúvida, herdeiras da antiga tradição indígena local da pesca, do povo Botocudo.
O jequiá (assim como outras armadilhas tradicionais como o quitandu ou a camboa) refletem todo um saber-fazer e incorporam uma observação fina da natureza: comportamentos dos animais, movimentos do mar e do rio, fenômenos atmosféricos. Essas armadilhas, juntas com a maneira, o momento e o lugar onde elas estão colocadas, constituem assim um verdadeiro dispositivo que consegue prever e antecipar engenhosamente as reações dos animais que pretendem capturar.
Ou seja, esse objeto aparentemente simples, rudimentar e modesto, está na verdade cheio de agenciamentos e de intencionalidades*. Não somente reflete desejos do quem o constrói (fazer um objeto bonito e eficaz; capturar crustáceos e peixes), mas também antecipa roteiros e comportamentos dos habitantes submersos no rio (pois cada tipo de armadilha é destinada a uma espécie “alvo” especifica). Portanto, um pouco do homem e um pouco do animal está, para dizer assim, “embutida” nesse objeto de pesca.
O jequiá joga com o dimensão temporal: é um mecanismo de espera, uma armadilha à relógio. Esse objeto passivo e imóvel se torna uma armadilha que consegue literalmentefazer agir* as presas. Atraídos pelos pedaços de peixe ou de carne colocados dentro do jequiá, os crustáceos e peixes entram e se deixam prender no que, nesse momento, já se tornou uma gaiola. O manuseio do jequiá no rio e nos brejos pode ser visto como uma “técnica de encantamento”* da presa.
Acho que também me deixei capturar nessas armadilhas. Talvez ficando preso no próprio imaginário que projetei nelas, entre curiosidade documental, admiração e subjetividade.
Jequiás no quintal de seu Anoilton
Detalhe do Jequiá
* Nota-se que o antropólogo Alfred Gell utiliza a expressão “técnica de encantamento”, ou ainda mais “nexus de intencionalidades”, para definir a arte. Pois, saindo da clássica visão estética ou genealógica do obra de arte, ele propõe assim uma definição mais abrangente. I.e: a arte é vista por ele como algo que faz agir os diferentes agentes (produtores e receptores da arte - ou seja artistas e público-, mas também mecenas, marchands, galeristas, etc.). Nessa perspectiva, Gell insiste justamente no paralelo entre a arte e a armadilha.
Ver o artigo de A. Gell “Vogel's net: traps as artworks and artworks as traps” (Journal of Material Culture, 1996), assim como o seu livro Art and Agency (Clarendon Press, Londres, 1998).