Quando mãe Edna aprendeu a puracar
Mãe Edna gosta de conversar e de contar histórias. Com uma facilidade desconcertante (para mim), ela passa de um registro da realidade a um outro. São lembranças encantadas da infância em Regência há 60 anos, expressão de saudade de um pai tão amado, visões da mediunidade e diálogos íntimos com suas numerosas “entidades” sobrenaturais (Boiadeiro das Almas, Caboclo Sete Flechas, alguns Orixás...), cantos e rezas, comentários lúcidos sobre a vida, rememorações de encontros marcantes... Tudo isso se mistura no fluxo de uma narrativo cheia de poesia e de magia. Ouvi-la é se deixar levar pelas circunvoluções barrocas da oralidade, no prazer de compartilhar a experiência de uma vida muito singular, marcada por múltiplas formas de transcendência.
Depois de morar décadas na região de Vitoria, Dona Edna, mãe-de-santo iniciada na Umbanda desde criança, voltou a viver recentemente na vila de Regência, por ter sido chamada pelas suas entidades.
Ela passou boa parte da sua infância, de 7 as 14 anos de idade, em Regência, que nesse tempo ainda era uma aldeia bem afastada. Naquela época, espertinha e ágil, convivendo com as coleguinhas indígenas, Edna aprendeu a pescar no rio e no mar, a tecer redes, a fazer esteira, a raspar farinha, a fazer arapuca... Um mundo outro se abriu para ela.
Ela lembra, por exemplo, do episódio quando aprendeu a puracar:
-Oh Adelaide [uma amiguinha indígena da Edna], que quer dizer “puracar”?
-É pegar o peixe com a mão...; enfiar a mão e puxar o camarão ou a lagosta dentro do buraquinho...
-Você me ensina?
-Amanhã tô indo tal hora pescar.
-Tá bom ; vou mandar minha mãe fazer o meu samborar [um tipo de sacola para enfiar os peixes] hoje.
Mamãe fez, sentou na máquina, rapidinho, botou ançinha...
-Minha filha, tranque assim, para o seu peixinho não escapar...
-Mãe, vou trazer tanto camarão hoje, a Senhora não imagina, vou aprender isso aí.
E fui.
Quando cheguei lá: quanto pituzão! Nossa ! Era fartura.
[De volta em casa]:
-Mãe, só tem pitu, pitu grande! As meninas fizeram soltar todos os pequenos.
-Porque, minha filha, elas pediram isso a você?
-Mãe! A natureza trabalha mas a gente tem que ajudar. Os grandes peixes, a gente come; os pequenos ficam lá para se criar. Para depois, na outra maré vazante, a gente ir lá buscar eles.
-Ah sim, índio é inteligente minha filha....
-Mãe, quanto sabedoria eles [os índios] tem. Eu tô aprendendo muito com eles...